Colunistas
Aproximar-se do pequeno para ver o grande
Por: Pablo Linde
No começo de março de 2020 o coronavirus estava se expandindo na Espanha, mas as estatísticas oficiais mostravam apenas algumas dezenas de casos diários no país. Alguns hospitais de Madri começaram a soar os alarmes. Suspeitávamos que não estavam sendo feitos suficientes testes, mas as autoridades sanitárias não publicavam o número concreto delas. Tudo nos levava a pensar que não estávamos vendo uma grande parte da foto, mas também não tínhamos dados quantitativos para saber o tamanho dessa parte.
Se não existem dados oficiais ou se eles são falhos, nós jornalistas nos topamos com um obstáculo enorme para transmitir ao público o que está realmente acontecendo; isso se aplica especialmente a um contexto como o de uma pandemia, mas pode ser extrapolado a muitos outros. Apesar de no geral não termos a capacidade de fazer uma estatística por conta própria, podemos nos aproximar por outros ângulos que nos mostre um pouco mais da foto incompleta. Quando nos impedem de ver o macro, não resta outra opção que nos aproximarmos do micro.
Isso fizemos. Falamos com hospitais, com laboratórios, com os pronto-socorro e com epidemiologistas para tentar interpretar o que estava acontecendo. Não podíamos quantificar, ninguém poderia fazer isso de forma exata naquela época, mas pelo menos podíamos concluir que o que estávamos vendo provavelmente era só a ponta do iceberg. Com essa filosofia, em uma sexta-feira, dia 7 de março, publiquei no jornal El País o artigo ‘La magnitud de la epidemia sigue oculta’. Queríamos mostrar que o que estava acontecendo era muito mais grave do que os números oficiais mostravam, mas não podíamos estabelecer quão mais grave era.
Na segunda-feira seguinte os casos já tinham disparados, agora sim, de forma oficial. Espanha começou a tomar medidas contundentes e só uma semana mais tarde o presidente Pedro Sánchez anunciaria ao país que um estado de alarme entraria em vigor no dia seguinte. A partir daí os espanhóis passaram praticamente dois meses trancados em suas casas.
Os problemas de acesso à informação relacionada à saúde podem ter muitas formas de acordo com o contexto e o país. Mas partir do fio menor para se chegar ao quadro maior é sempre uma boa estratégia.
Um problema frequente na Espanha para retratar a realidade do país é a divisão administrativa da União, formada por 17 comunidades autônomas e equivalente aos departamentos na Colômbia, províncias na Argentina e estados no Brasil. Os dados não são unificados até meses ou anos depois de que cada comunidade os tenha compilado. No melhor dos casos, cada governo regional publica seus dados, que nem sempre são verificáveis e comparáveis com outros, o que torna muito complicado seguir assuntos importantes baseando-se em dados epidemiológicos, por exemplo. Sem precisar ir muito longe, passamos os primeiros meses da pandemia com os dados de leitos hospitalares disponíveis baseados em um informe de 2018: o ministério ainda não tinha unificado e publicado as últimas estatísticas disponíveis.
No início da vacinação encontramos um problema similar para conhecer o ritmo em que a imunização avançava. Ainda que o ministério publicasse todos os dias o número de doses recebidas e aplicadas em cada região autônoma, não conhecíamos com detalhes em quais grupos etários elas estavam sendo aplicadas, por exemplo. Em uma atualidade tão mutável, buscamos os governos regionais. Mais uma vez, tivemos que descer um escalão. Mas eles tampouco iam revelar se havia problemas nos seus sistemas. Então tivemos que descer mais um escalão e perguntar nos hospitais, a médicos e enfermeiras. E assim tentar destrinchar cada assunto tratado para se acercar à realidade.
Não será nenhuma novidade a jornalistas mais experientes eu dizer que os sindicatos são umas das melhores ferramentas para chegar a informações que as autoridades não facilitam. Mas sei que este é um espaço para muitos profissionais jovens ou em formação e a eles asseguro que será útil começar por essas organizações de trabalhadores, fáceis de localizar, e pelas quais se pode chegar a especialistas de diversos tipos, entrando em um mundo que seria difícil de outra forma.
Uma via parecida a essas são as associações ou organizações médicas. E, já há algum tempo, as redes sociais são uma grande aliada para encontrar contatos que nos ajudem a conhecer o que realmente acontece nos âmbitos sobre o que informamos. Algumas das melhores fontes que tive nesta pandemia eu as conheci pelo Twitter. É difícil encontrar aqui dados que nos aproximem do macro, mas as redes são um bom ponto de partida. Inclusive indo além: um grupo de médicos da Comunidade de Madri recompilou em uma conta do Twitter, hospital por hospital, o número diário de pacientes admitidos nas UTIs e a porcentagem de leitos gerais ocupados, uma informação muito valiosa que não era divulgada pelas autoridades.
Quando os governos resistem a dar dados é comum também haver formas de exigi-los. Isso depende de cada país, mas posso falar com conhecimento de causa do caso espanhol. Em 2013 foi aprovada uma lei de transparência na qual é possível exigir informação considerada de interesse público. Não é uma via rápida e nem sempre funciona, mas tem permitido aos meios de comunicação que publiquem dezenas de notícias que teriam permanecido ocultas não fosse por ela.
Similar a essas leis são os Ministérios Públicos e os Congressos. O governo é obrigado a responder perguntas dos deputados. Basta encontrar um aliado na Câmara que as faça por nós e nos entregue a informação.
Há muitas travas à informação, diferentes em cada lugar e em cada realidade. Os jornalistas devem usar a inteligência para superá-las.
Sobre o Prêmio Roche
O Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde é uma iniciativa da Roche América Latina em parceria com a Secretaria Técnica da Fundação Gabo, que busca reconhecer a excelência e estimular a cobertura jornalística de qualidade relacionada à saúde na América Latina.
Em 2021 os melhores trabalhos serão reconhecidos nas categorias Jornalismo Escrito, Jornalismo Audiovisual e Cobertura Diária. A pessoa ou equipe jornalística vencedora de cada categoria (no caso de um trabalho coletivo, a equipe deverá escolher um representante) receberá uma bolsa de estudo de até 5.000 dólares. Em cada categoria será dada uma menção honrosa para o tema de acesso à saúde; uma menção honrosa também será concedida em jornalismo de soluções e outra em cobertura jornalística da COVID-19.
Tem até 9 de junho de 2021 para registrar seu trabalho. Conheça as bases do Prêmio aqui. Seu trabalho merece ser reconhecido!