Colunistas
Cobertura da mudança climática no jornalismo de saúde
Por: Roxana Tabakman
Quando um adolescente foi internado na UTI neste ano como o primeiro caso de raiva humana em 44 anos na capital do Brasil, os meios de comunicação abriram espaço e divulgação a campanha de vacinação antecipada de bichos de estimação. Mas este serviço comunitário não toca a questão de fundo que o jornalismo deve alcançar: Por que isso aconteceu?
O caso estava relacionado ao ataque de um gato, mas o vírus provinha de uma espécie de morcego. A ciência demonstrou que, no Brasil, a raiva humana está aparecendo em lugares inesperados, como Rio de Janeiro, Angra dos Reis e Brasília, transmitida principalmente por morcegos que expandiram seu habitat. As mudanças no alcance geográfico das espécies são uma das indicações ecológicas da mudança climática.
Conectar notícias de saúde à crise ambiental é necessário. Não se trata mais só do futuro do urso polar, mas da saúde daqueles que amamos. Há influência do meio ambiente no surgimento de novas doenças ou no aumento daquelas já conhecidas: raiva, dengue, febre amarela, malárias e muitas outras.
Um estudo recente mostrou que mais da metade das doenças infecciosas se agravaram em algum momento por questões climáticas. Atribuem-se 160 doenças ao aquecimento global, 121 às enchentes, 81 às secas… Cada uma dessas doenças ou cada evento climático pode gerar coberturas jornalísticas que levem ao público conhecimento sobre a mudança climática.
Números que dão calor
Vamos ter um forte aumento da frequência de eventos de calor extremos na América Latina e, em dias com muito calor, para cada 1º C de elevação da temperatura as mortes vão aumentar 6%.
Como chegar ao público sem advertências distantes ou sem entediá-los com números? “Humanizar, localizar e solucionar”, propõe o diretor de Covering Climate Now, Mark Hertsgaard.
Podemos por meio de histórias entender melhor e saber mais que os mais velhos estão entre os mais vulneráveis. Mostrar casos com nome e sobrenome é uma alternativa que deve ser tomada com cuidado, no entanto. Não existe uma temperatura urbana segura, universal, única para ser usada como referência. O infarto de uma pessoa, por exemplo, está associado a múltiplos fatores de risco, não apenas ao calor.
Quanto mais local mais atrativa é a informação e, a partir de um fato pontual, podemos expandir os estudos científicos sobre temperaturas extremas que existem para cada uma das cidades da América Latina. Consulte sempre os especialistas de seu país.
No caso do atendimento da saúde, a utilidade do jornalismo de soluções é ainda maior, porque captura a atenção de um público cansado de más notícias.
Pense também no enfoque de redução de danos. Sua matéria do dia é sobre remédios? Há exemplos concretos de medicamentos que não podem ser prescritos quando há uma onda de calor. Aconselhe as empresas a proteger os trabalhadores com acesso a sombra, água fresca e descanso frequente; pesquise se a cidade oferece lugares públicos “de esfriamento”, com ar-condicionado, e lembre aos idosos não se exporem ao calor e beberem muita água. A partir dessas soluções conjunturais, você pode informar também como colaborar para minimizar a mudança climática.
Baseie-se no “co-benefício”. Se você escreve sobre nutrição, as dietas para prevenir doenças são as mesmas que as que mitigam o efeito do agronegócio no clima. Aborde o cuidado com o meio ambiente como um caminho para prevenir doença pulmonar crônica, asma, insuficiência cardíaca e, de maneira geral, proteger a saúde de gestantes, bebês e idosos.
Muitas das medidas para se preparar para a mudança climática são similares àquelas tomadas para lidar com a pandemia, como identificar as populações mais vulneráveis, avaliar a capacidade dos sistemas de saúde públicos, investir em estrutura e enfatizar a resiliência e a equidade. Permita que se saiba o que os governantes fazem ou deixam de fazer. Se não fazem nada, você seguirá apurando sobre mortes evitáveis.
Melhorar a cobertura
O portal brasileiro Comunique-se divulgou pesquisa mostrada na reunião anual da Associação Mundial de Jornais que revela que o jornalismo não coloca a mudança climática em outros temas e que as pessoas ainda não a tem entre suas preocupações pessoais.
A falta de interesse se explica, em parte, porque o público consome informação de acordo com o que pensam, e também porque não reage ante uma ameaça que parece estar em outro lugar ou no futuro. Devemos fazer a nossa parte, com uma comunicação clara, correta e concreta.
Devemos ser honestos e fugir das extrapolações sem fundamentos. Há métodos que calculam a probabilidade de um evento concreto ocorrer por causa do aquecimento global (“atribuição de fenômenos extremos”), mas não está disponível para cada dia de calor ou chuva intensos.
“No momento de informar fenômenos extremos, os meios de comunicação costumam cometer três erros muito comuns: 1) Ignorar a mudança climática como causa do fenômeno; 2) Atribuir o evento à mudança climática sem oferecer nenhuma prova disso; 3) Atribuir um fenômeno à mudança climática como causa única”, afirma o guia Comunicando eventos extremos e mudanças climáticas: um guia para jornalistas, disponível em espanhol e português.
Especialistas da Universidade de Oxford e do Imperial College of London também afirmam que esses “eventos acumulativos” seriam praticamente impossíveis sem a mudança climática.
Por onde começo?
– As fontes locais são imprescindíveis. Se são ONGs, dão informação e contatos. Os especialistas das universidades, hospitais e entidades supranacionais são fontes de informação e interpretação.
– A Organização Mundial da Saúde oferece informação em português sobre mudança climática e saúde, assim como a Organização Panamericana de Saúde. Aprofunde-se no conceito “Uma Saúde”, sobre os desafios do relacionamento entre humanos, animais e meio ambiente (em espanhol e português).
– O informe do IPCC é uma referência, com um capítulo dedicado à saúde.
– Uma colaboração internacional, multidisciplinar e independente que monitora a saúde em função da mudança climática é The Lancet Countdown on Health and Climate Change. Parte do conteúdo também está em espanhol.
– O projeto Saúde Urbana na América Latina da Fundación Wellcome também está em português e espanhol, assim como a ONG Saúde Sem Dano, com versões em português e espanhol.
– Entre os meios de comunicação, SciDevNet tem uma edição para a América Latina com boa cobertura de saúde e meio ambiente.
Devemos, muitas vezes, manter uma dose de espírito crítico frente a uma fonte e considerá-la a ponta do nó que depois terá que ser desatado.
Finalmente, respeite seu olfato jornalístico quando notar que sua fonte não é imune a preconceitos, pressões, interesses, ou quer causar impacto a qualquer custo.
Sobre o Prêmio Roche
O Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde é uma iniciativa da Roche América Latina e da Secretaria Técnica da Fundação Gabo, que busca premiar a excelência e estimular a cobertura jornalística de qualidade de pautas de saúde e ciência na América Latina, integrando sanitário, econômico, político, social, entre outras áreas de investigação do jornalismo.