Colunistas
Como conviver com o “lado obscuro” do jornalismo
Por: Pablo Linde
A cada dia recebo dezenas de e-mails de assessorias de imprensa, propostas de entrevistas, resultados de estudos. Literalmente dezenas. De notícias ou suposta notícias de farmacêuticas, universidades, laboratórios, instituições públicas, organizações não-governamentais, empresas relacionadas com o mundo da saúde e sanidade mental ou suas assessorias de comunicação, que querem “me vender” – para mim e para muitos outros jornalistas – seu produto, descobrimentos, conversas com seus profissionais para que me contem o que estão desenvolvendo, produzindo ou comercializando…
Eu teria que dedicar metade do meu dia de trabalho só para responder todos esses e-mails. Em geral, sequer tenho tempo para lê-los. No máximo consigo dar uma olhada muito superficial para ver se pode haver algo que me interesse ou um embrião de artigo em um deles. E esses são uma porcentagem tremendamente pequena para um meio generalista como o El País, o jornal no qual trabalho. É tão pouco frequente encontrar algo publicável que não é raro que entre tanto ruído eu deixe escapar conteúdos com potencial.
Entre jornalistas costumamos dizer “passar para o lado obscuro” quando deixamos um meio de comunicação – seja televisão, rádio ou jornal – para trabalhar em um escritório ou assessoria de imprensa. Mas isso não é muito justo. Não há nada obscuro em comunicar o que uma empresa ou instituição faz. Mas, como em quase todos os clichês, há algo de verdade nesse costume.
Em um mundo ideal, os jornalistas deveriam contar aos nossos leitores a verdade dos fatos ou o que conseguimos apurar dele depois de filtrar a informação divulgada pelos depuradores da profissão: o contraste e o rigor, e deixar de lado os vieses para dar a informação mais neutra possível, ainda que ninguém esteja livre de vieses e subjetividades.
O trabalho do “lado obscuro” é distinto. Legitimamente, eles têm que mostrar o melhor das marcas e empresas a qual trabalham, promover o que fazem e fazer com que os meios as retratem bem em suas notícias. Aos jornalistas de meios de comunicação não deveria importar se elas saem bem ou mal na notícia, teríamos que simplesmente buscar a realidade dos fatos e contar a nossos leitores o que consideramos relevante e interessante.
Neste trabalho, os jornalistas de um e do outro lado trabalham em uma espécie de simbiose na qual cada um em seu lugar tenta tirar o melhor proveito para a sua empresa. Não é, ou não tem por que ser – mas ainda assim há – uma relação conflitiva, mas de cooperação.
De maneira muito simples, uns tentam vender sua mensagem e outros estão atentos – na medida em que podem – a essa mensagem para captar o que lhes é interessante e digno de ser publicado. E a comunicação não é unilateral: assim como as assessorias nos bombardeiam com suas notícias, nós também recorremos a elas com frequência para obter informação.
Mas como saber quando a informação é valiosa e precisa? Aqui entra em jogo os meandros deste ofício. Em primeiro lugar: hierarquizar, essa tarefa subjetiva de se perguntar se um determinado tema é relevante para nossos leitores, espectadores ou ouvintes. Depois, submetê-lo a escrutínio, contraste e ceticismo. Do contrário, é possível que acabemos publicando publi-reportagens de empresas ou instituições, que no setor de saúde tem um enorme poder de comunicação.
Meses atrás, antes da pandemia, entre as centenas de e-mails que recebo, vi algo que me chamou a atenção. Um hospital de Madri estava trabalhando com o “menor dispositivo médico do mundo”. Quando alguém fala sobre o “o mais” ou um novo recorde, a primeira coisa a se perguntar é o que isso supera. Se, por exemplo, um hospital fala de um recorde de cirurgias em um dia, há que saber qual era o dia em que foram feitas mais cirurgias antes deste. Do contrário, é impossível (ou desonesto) fazer tal afirmação. Essa pergunta, no entanto, costuma desconcertar as pessoas que têm que respondê-la.
—Inauguraram o maior laboratório da Espanha.
— Qual era o maior até agora?
— Ah, não sabemos.
— Então como não posso confiar que o seu é o maior, suspeito que você está inventando essa informação.
Quando perguntei qual era o menor dispositivo médico até agora, aquele que ostentava tal mérito até então, depois de uma pesquisa rápida reconheceram que “parecia” que o dispositivo usado pelo hospital não era o menor, mas que havia outro que o superava. Em qualquer caso, ainda que o que me contaram a princípio não era totalmente certo, me interessava a técnica que usavam. Fui ao hospital, falei com médicos e pacientes e publiquei uma reportagem sobre o tema.
Essa é a simbiose que eu comentava. Eles tiraram proveito: um jornal nacional falava sobre a sua técnica. E eu contei algo que considerava interessante. Mas isso sem me deixar levar pela propaganda e dando às coisas seu devido peso.
Sobre o Prêmio Roche
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