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As coisas são como devem ser: Relatório do Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde 2016

As coisas são como devem ser: Relatório do Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde 2016

setembro 14, 2016

Relatora: Carolina Arteta Caballero

Jurados da categoria Rádio:

Carlos Ulanovsky

Jornalista e escritor, com mais de 50 anos de carreira em diversos meios da Argentina e do México. Publicou 23 livros, na sua maioria sobre a história dos meios de comunicação do seu país. A maior parte da sua carreira, ele dedicou à rádio; participou e dirigiu programas em emissoras tais como a Rádio Mitre e a Rádio Nacional, onde atualmente conduz o programa de variedades Reunion Cumbre. Também fez parte das redações de Clarín, La Nación e Página 12, e participou em programas de televisão. Durante sua estadia no México, nos anos 70 trabalhou no Jornal El Universal, Televisa e nas revistas Proceso e Interviú.

Veet Vivarta

Especialista no setor de meios, direitos humanos, desenvolvimento e sustentabilidade, Veet Vivarta atualmente exerce como consultor independente. Jornalista desde 1976 trabalhou nos principais jornais de Brasília, capital do Brasil. Em 1996, se iniciaram suas atividades junto a ONG ANDI – Comunicação e Direitos, do qual chegou a ser Secretário Executivo. A missão desta organização está orientada ao reconhecimento do rol estratégico que jogam os meios de comunicação na promoção dos direitos humanos, dos valores democráticos e o desenvolvimento inclusivo.

Forma parte do Comitê Gestor do Global Fórum for Media Development (GFMD) na qualidade de representante da América Latina e do Caribe. Participou também como representante da sociedade civil de no grupo de trabalho responsável da construção do Suplemento de Índices de Desempenho dirigidos especificamente ao setor de meios, no âmbito da Guia para a Elaboração de Memórias de Sustentabilidade do Global Reporting Initiative (GRI).

Jurados da categoria Internet:

 

Hernando Álvarez

Diretor da BBC Mundo e editor regional das Américas do Serviço Mundial da BBC. Hernando iniciou sua carreira em 1992 na Colômbia como parte da equipe da Revista Semana, em 1996 se mudou para Londres, onde obteve um mestrado em História na London School of Economics. Foi corresponsável em Londres do El Espectador e da Revista Cambio e trabalhou para a agência de notícias espanhola EFE. No ano de 2000 se incorporou ao Serviço Mundial da BBC. Como jornalista da BBC Mundo, Hernando cobriu na rádio as guerras do Afeganistão e do Iraque e mais tarde, trabalhou como corresponsável para a região andina com sede em Bogotá. Em 2006 foi nomeado editor geral da BBC Mundo, quando o lugar foi premiado com o Prêmio Ortega e Gasset de Jornalismo. Desde 2012 é diretor da BBC Mundo e editor da região das Américas do Serviço Mundial da BBC. Em 2015 esteve a cargo da criação e do lançamento do Digital Hub da BBC, um lugar que produz conteúdo jornalístico digital para os 29 idiomas que são transmitidos pela BBC.

 

Mariluce Moura

Jornalista especializada em jornalismo científico desde 1988.  Anteriormente trabalhou durante duas décadas em outras áreas do jornalismo nos principais meios do seu país. Criou e coordena o Projeto ‘Ciência na rua’ (www.ciencianarua.net) que oferece conteúdo científico focado ao público jovem. Em 1999 fundou e dirigiu até 2014 a revista Pesquisa Fapesp, a principal revista de divulgação científica do país, que serviu de modelo para muitas outras publicações do seu tipo.

 

Assessoria médica:

Ángeles López Urbano

Estudou Enfermagem na Escola Universitária de Enfermagem de Córdoba e posteriormente se licenciou em Jornalismo na Faculdade de Ciências da Informação da Universidade Complutense de Madrid. Realizou um Mestrado de Comunicação Científica e Médica na Universidade Pompeu Fabra de Barcelona. Durante sete anos trabalhou em diferentes hospitais de Córdoba e Madrid como enfermeira em múltiplas especializações como a oncologia, traumatologia e medicina interna. Desde o ano 2001 trabalha na seção de saúde do jornal El Mundo, onde começou como redatora.  Atualmente dirige a seção e desenvolve projetos como especiais informativos, formatos audiovisuais em vídeo e gráficos e gestão de redes sociais. Nos últimos anos realizou workshops de comunicação em saúde dirigidos a médicos, pesquisadores e estudantes de Jornalismo, Medicina e Enfermagem.

 

Introdução

Para a quarta edição do Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde, quatro jurados provenientes de três países –Brasil, Argentina e a Colômbia– se reuniram nos dias 4 e 5 de junho em Cartagena de Índias para eleger aos finalistas e vencedores. Durante esses dias, Carlos Ulanovsky, Veet Vivarta, Maurice Moura e Hernando Álvarez, com a assessoria médica de Ángeles López Urbano, avaliaram aos trabalhos pré-selecionados e conversaram sobre o crescente valor do jornalismo em saúde na América Latina.

No primeiro dia, os jurados da categoria Rádio, Ulanovsky e Vivarta, compartilharam as anotações que traziam dos trabalhados pré-selecionados, e em silêncio, os escutaram novamente, fazendo pausa para comentários breves, dos trabalhos dos que tinham conceitos distintos. No fim, os jurados decidiram premiar as produções radiais que mantiveram sua unidade ao redor do tema central escolhido e que utilizaram recursos narrativos originais para sustentar a atenção do ouvinte.

Durante o segundo dia, Álvarez e Moura, jurados da categoria Internet, identificaram desde o início da manhã os trabalhos que se destacaram por sua boa qualidade jornalística e relevancia informativa. Após várias horas de debate, elegeram a aqueles trabalhos que conseguiram tratar de temas de saúde desde pontos de vista distintos aos usados tradicionalmente pelos meios, que aproveitaram as ferramentas digitais e que, utilizando uma linguagem própria da internet, conseguiram contar uma história interessante de forma clara.

Como recomendação, mencionaram que os trabalhos na internet devem ser pensados para adaptar-se às diferentes plataformas –móvel, tablete, e desktop– de tal maneira, que o leitor possa ler o conteúdo em cada uma delas. Sugeriram, além disso, que os jornalistas e os meios interatuem com suas audiências e desta maneira encontrem opiniões, relatos e/ou novas histórias que possam chegar a nutrir suas reportagens.

Do encontro, restaram os finalistas e vencedores do Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde, as reflexões dos jurados sobre o estado do jornalismo em saúde na América Latina, suas recomendações e este relatório.

Palavras chaves: rádio, internet, jornalismo em saúde, pesquisa, inovação, relevância social, multiplicidade de fontes.

As coisas são como devem ser

“Odeio a expressão terceira idade, eu sou um velho”, diz Carlos Ulanovsky. São nove e quinze da manhã em Cartagena de Índias e apenas se inicia o primeiro dia do processo de seleção do Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde. No salão, sentados de frente para uma mesa retangular, além do jornalista Carlos Ulanovsky, está também o consultor de meios Veet Vivarta e a especialista Ángeles López Urbano. Sobre a mesa descansam as anotações que os dois jurados e a assessora médica que trouxeram desde a Argentina do Brasil e da Espanha. Os três possuem a tarefa de decidir quais dos 22 trabalhos pré-selecionados na categoria Rádio serão, no final do dia, os dois finalistas e o vencedor.

Vivarta conta que identificou a vários tipos de jornalismo em saúde presentes nos trabalhos que recebeu: Jornalismo de serviço para a população (o que comunica, por exemplo, sobre as campanhas de vacinação); de informação (como os que incentivam os governos e a Organização Mundial da Saúde tendo como motivo do dia o câncer de mama); de inovação científica (que conta aos ouvintes as soluções para um problema a raiz dos resultados de uma investigação); e de política pública (que investiga o funcionamento do sistema de saúde. Pode partir de um caso para contar a situação geral).

“A maioria de conteúdos informam do tema sem discutir profundamente suas razões e possíveis soluções a longo prazo”, diz Vivarta. “‘Precisamos de mais dinheiro. ’ Sim, claro que é uma emergência, mas o que segue depois. Como vemos profundamente os problemas estruturais de um sistema de saúde”, reflexiona em voz alta. Por isso, opina que o mais difícil de levar a cabo é o último tipo de jornalismo em saúde, porque exige conhecimento sobre o sistema, ou em todo caso, sobre o orçamento público. “É muito difícil de manejar porque algumas vezes não são dados transparentes, e outras vezes são complexos”, diz Vivarta.

Entretanto, aclara que os jornalistas não devem deixar de fazer a cobertura destes temas por mais desafiantes que sejam. “O papel do jornalista nos temas de saúde, deve ser reivindicado. Acredito que nada é garantido quando um médico, um vigilante sanitário ou uma enfermeira dá informação sobre saúde. A informação de saúde deve ser também crítica, e acho que o ponto crítico pode ser posto melhor por um jornalista do que por um especialista”, adiciona Ángeles López.

Na medida em que a conversação avança, as opiniões dos jurados continuam se encontrando. Os três coincidem em que um jornalista deve investigar a fundo um tema que tenha relevância social para assim, poder contá-lo bem. Mais tarde nesse mesmo dia, López dá um exemplo: “Quando ocorre uma crise de saúde existem muitos rumores e má informação. Um Jornalista vai até uma fonte oficial ou médica, que possa esclarecer para a população o que está ocorrendo, e uma das coisas que quase sempre lhe é dita é: ‘Não posso lhe dizer mais do que um par de coisas, pois eu não sei o que está acontecendo’”. E adiciona: “Estabelecer um julgamento rápido sobre um tema, provavelmente conduz a uma má interpretação”.

Maurice Moura e Hernando Álvarez, os jurados da categoria Internet se sentam no mesmo lugar no dia seguinte. Durante a manhã falam sobre a importância de dar aos leitores a informação que necessita para compreender todos os ângulos de um problema. Coincidem, sem saber, de que uma investigação exaustiva é o que dá credibilidade a uma reportagem. Dizem também que incluir o contexto da situação que se narra é importante, e que é um elemento necessário para construir um trabalho balanceado.

Os jurados da categoria Internet passam grande parte da tarde do dia 5 de junho debatendo a respeito de um dos 22 trabalhos pré-selecionados. Consideram que “El negocio del IGSS con una empresa podría matar (literalmente) a 530 personas”, da Guatemala, é uma narração aprisionante de um processo corrupto que pôs em perigo a vida de centenas de pessoas. “É uma denúncia dentro da luta contra a corrupção que se Leva adiante na Guatemala e que merece ser aplaudida”, diz Álvarez. A reportagem, entretanto, possui um vazio que deixa os jurados com vontade de saber mais. As dúvidas surgem sobre o que a história não conta.

Durante quase duas horas, Álvarez, Moura e López leem novamente fragmentos do trabalho, buscam mais informação sobre a farmacêutica Baxter e o Instituto Guatemalteco de Segurança Social (IGSS) na internet, e tratam de entender o que aconteceu antes do caso que conta o trabalho. Leem artigos de meios de vários países da América Central: México, Guatemala, el Salvador e descobrem que as raízes do problema já vem de meio século atrás. “Temos um problema de contextualização?”, De repente Moura se pergunta.

“É muito difícil quando a corrupção politica se mistura com os interesses empresarias. Mas é nesse momento quando o jornalista deve ter uma clareza total do problema, e se perguntar: ‘Até que ponto estou sendo um instrumento em uma guerra de interesses?’”, diz.

Os jurados analisam o processo narrado pela reportagem. Juntos reconstroem os passos da história e concluem que é necessário que o leitor saiba o contexto –neste caso, do que aconteceu em outros países, para terem uma visão completa de um problema de saúde. Dizem que se deve dar importância a uma etapa sem deixar de mencionar a outra. Pedem que as suas observações apareçam aqui.

Buscar novos focos, múltiplas vozes e outras narrativas

Os pontos de vista pouco convencionais, que rompem com os preconceitos dos leitores, são um recurso que elogiam os jurados em vários dos trabalhos que avaliam.

A opinião da enfermeira grávida que quer ter um parto humanizado; as mãos do homem que sofreu um acidente de trabalho e se transformou em uma estatística; a voz da mãe da garota quem o governo considera vítima da sugestão coletiva por sofrer desmaios depois de que foi vacinada contra o Vírus do Papiloma Humano (VPH); o rosto da mulher que vê sua mãe com Alzheimer, brincar com uma boneca.

Diz Vivarta que são aqueles trabalhos que buscam “abordar um tema que não é comum desde uma visão que não é tradicional”.Os que lhe chamam a atenção. É interessante –adiciona– a reportagem que contrasta opiniões e que, apesar de defender uma posição, não é militante. Um trabalho que se mostra aberto às críticas.

Mas no caso de que o jornalista escolha focar-se numa fonte só deve contar a razão pela qual a faz. López fala da honestidade do comunicador e de dizer, por exemplo, o por que elege narrar a história de um só hospital. “O ouvinte tem que saber o porquê lhe estão contando algo”, aclara.

Vivarta, López e Ulanovsky opinam durante as pausas nas gravações dos programas que decidiram mais uma vez. Enquanto o salão de Cartagena fica repleto de sons, Ulanovsky fecha os olhos e abaixa a cabeça para voltar a escutar os programas como o fez na primeira vez, no seu apartamento de Buenos Aires. “Eu tratei de julgar a rádio como geradora de histórias. Eu gosto da rádio na qual se é possível notar o trabalho por trás dela. Do tipo que não se conformou como uma fonte só”, conta ele.

López diz que talvez existam dos tipos de trabalhos entre os que foram recebidos. Alguns tratam de um tema de forma ampla, com muitas vozes, e outros são menores, focados, e utilizam formatos que chamam a atenção do ouvinte. Ao falar deste último, se refere a um estilo de programa mais informal, “muito ameno e capaz de chegar a todo o mundo”.

Logo chegam à conclusão de que uma reportagem deve ser robusta sem deixar de ser atrativa para o público. O balanço dos elementos “duros” e “moles” cria uma narrativa que captura ao ouvinte. Para Vivarta, isto se consegue “com uma edição dinâmica e usando recursos de rádio sem fazer do programa um show ou algo de entretenimento. É utilizar recursos próprios do meio para dinamizar informações que vem em um pacote pesado”.

Destacam o efeito alcançado em um dos trabalhos, que contrasta os relatos das meninas de El Carmen de Bolívar com os conceitos dos especialistas que fazem uma análise desde o ponto de vista médico. “Agrega uma visão diferente a um tema que os meios já tinham feito cobertura”, diz Vivarta.

No caso da internet, Moura e Álvarez falam de criar um jogo narrativo digital não só com relatos humanos e a informação estadística, se não também com uma apresentação visual que intercale texto, imagens, vídeos e gráficos interativos. Tudo isto com um sentido por trás para que o leitor sinta que o trabalho é um pacote só. Para Álvarez, se trata de realizar uma investigação inicial para assim decidir qual será o partido narrativo a seguir. “Como contar a história que descobri e qual ferramenta vou usar”.

Insiste também em que se eles vão utilizar imagens e vídeos tem que se pensar desde e para a web. “O digital é mais autêntico e próximo”, diz Álvarez. “é como quando você fala com seus pais ou com seus irmãos. Assim é a maneira como consumimos na internet agora”, confessa. Por isso, um trabalho que inicia com um vídeo que mostra o lado humano de uma condição médica, gera empatia na audiência digital. Mas, claro, por mais que no jornalismo nunca existam fórmulas infalíveis.

Em algum momento da tarde, Ángeles López olha para baixo e observa os papéis que tem na sua frente. São os textos dos trabalhos de ambas as categorias que passaram para esta última fase. Conta que os imprimiu e os levou com tranquilidade. Mas logo diz: “É importante que um trabalho seja redondo visualmente. Se deve valorizar que estamos na internet. Não é um jornal”.

Resgatar temas poucos tratados nos meios

O jornalismo em saúde oferece um espaço para abordar temas relevantes para a sociedade que –por sua complexidade– muitas vezes deixam escapar o radar do dia a dia dos meios de comunicação. Com o passar das horas, os quatro jurados voltam com esta ideia uma e outra vez.

“Que a temática de saúde não seja unicamente questão de oportunismo e menos um festim mediático. É que, sobre estes temas, os meios sempre exageram ou escandalizam, enquanto os governos ocultam, minimizam, e no melhor dos casos, marcham atrás dos acontecimentos”, reflexiona Ulanovsky.

Tanto na seleção dos trabalhos finalistas da categoria Rádio quanto da categoria Internet, os jurados valorizam as produções que abordam problemas que estão presentes em vários países da América Latina, mas que não recebem a atenção mediática que merecem, como os acidentes de trabalho e a má nutrição infantil. Aconselham que os jornalistas encontrem histórias que lhes permitam abordá-las. Resume Vivarta: “Em termos médicos, interessa uma radiografia, um diagnóstico e logo um tratamento”.

Carlos Ulanovsky aponta também que é interessante abordar em temas que tenham sido cobertos de maneira rotineira já seja por vontade ou por pouca disponibilidade de recursos e de tempo. Ele diz assim: “Retomar uma história que ainda segue viva, porque nas notícias as histórias são esquecidas de maneira muito rápida”.

No dia seguinte, Mariluce Moura faz uma varredura pelos trabalhos escolhidos, e fala sobre o valor histórico de mostrar o peso que tem um tema específico na sociedade. Opina que uma reportagem sobre o Alzheimer, por exemplo, que inclua o lado científico, pessoal, e sanitário da doença mental “é uma mensagem no sentido de que é necessário valorizar estes temas que estão no interior da nossa experiência histórica”.

Mais tarde Moura fala desde sua própria experiência. Seu projeto Ciência na rua oferece conteúdo científico ao público jovem. Diz que para o jornalismo em saúde a explicação científica da doença ou condição médica da qual trata um trabalho, não deve faltar nunca. Por sua vez, esta deve esgotar todos seus recursos para conseguir que o leitor entenda do que se está falando. Para Moura, o desafio é resgatar um tema de saúde de uma forma profunda que tenha validez e que por sua vez seja o suficientemente clara para que possa chegar até um público amplo.

Veet insiste nesta característica. “Pensar no leitor, ou em todo caso, no ouvinte. Pregunta-se: A quem este trabalho vai interessar e quem vai dedicar seu tempo a ele”, diz.

Explorar novos (ou não tão novos) formatos e relacionar-se com a audiência

“Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loterias, e de passagem mordeu quatro pessoas que se atravessaram no seu caminho”. Três eram escravos negros; a outra foi Sierva Maria de Todos los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada mulata comprar uma fieira de guizos para a festa de seus doze anos.[1]

Utilizar fragmentos de “Do amor e outros Demônios” de Gabriel García Márquez dentro da narração de um trabalho que se apresenta para Fundação homônima seria talvez o menos inovador dos recursos. Talvez por isso, os jurados da categoria Rádio analisam detalhadamente a técnica empregada. Escutam o trabalho novamente e opinam. Suas observações dão conta de que as palavras do Nobel soam coerentes com o relato, e, em vez de cortar com a narração da história, a reforçam.

O grupo identifica também um formato que lhes chama a atenção: o documentário radiofônico. Este tipo de trabalho reúne vários relatos em torno a uma situação comum. A produção denota esforço e o tempo por trás disso. Temem, entretanto, que se cumpra aquela frase que diz que “aquele que pretende fazer muitas coisas ao mesmo tempo, não será capaz de fazer nenhuma bem”. Então recomendam sempre identificar o tema central e mantê-lo. Não se desviar. “Havia um jornalista veterano que sempre aconselhava que no meio de uma nota não abra outro motor, porque isso te desvia e te leva a outros lugares”, diz Ulanovsky.

No fim do segundo dia, os jurados reconheceram o mesmo formato literário em outro trabalho inscrito: “É uma peça jornalística rica em imagens que aporta cor, cheiro e música. É um exemplo de recuperação de um formato de jornalismo literário para a internet, que é visto como o menos literários dos meios”. Não é coincidência. Os quatro especialistas coincidem de que a forma de um trabalho guarda estreita relação com seu conteúdo. Por isso o formato que serve para um, pode não ser o melhor para outro.

Mais tarde, os jurados da Internet chamam para desenterrar a ideia que circula por alguns meios de comunicação de que os usuários da web não gostam de ler textos longos. Ángeles López conta que, por exemplo, na seção de Saúde do jornal español El Mundo vários trabalhos longos estavam estre os mais lidos.

Neste ponto os jurados entregam duas recomendações: Os meios estão convidados para utilizar novas métricas para medir a interação da audiência digital com seus conteúdos. Hernando Álvarez diz que, mais do que a leiturabilidade –ou a quantidade de usuários únicos que entram a um artigo–, as salas de redação devem colocar uma lupa no engagement, ou o tempo que uma pessoa dura consumindo um conteúdo. Assim como é feito no jornalismo de papel, na internet a ênfase deve estar na qualidade, mais do que quantidade. Nesse sentido, os jurados destacam os trabalhos que estão sendo feitos pelos “meios pequenos” –ou os nativos digitais- Na América Latina: estão aproveitando os recursos digitais para enriquecer seus trabalhos.

Segundo o conteúdo, os meios devem se adaptar às distintas plataformas desde as quais chegam até os leitores para que não se perca um pedaço da história entre uma e outra. Álvarez diz que a internet não deve ser pensada simplesmente como um lugar a mais para volcar o conteúdo jornalístico.

Diz, além disso, que as redes sociais mudaram as possibilidades que os meios tem para se relacionar com seus leitores, e que os jornalistas devem encontrar a forma de aproveitar isto. Abrir um tema para a audiência, encontrar outras vozes, e plasmar esses aportes na reportagem, é uma opção. “O passo que deve ser dado é o de escutar a audiência, mais além de que a audiência nos escute a nós”, diz Álvarez. “O interessante é que o jornalismo está se transformando em uma comunicação horizontal”, adiciona.

Sobre este ponto, um dos jurados da categoria Rádio durante à tarde do primeiro dia destaca que um dos trabalhos “é de alta qualidade e se atreve a arriscar. A cruzar limites”.

Durante os dois dias que dura essa atividade os jurados trabalham longas jornadas. Sabem que sua decisão será um reconhecimento para os que participaram do Prêmio, é uma mensagem para o resto dos jornalistas do continente. Conversam, debatem, opinam e reflexionam em voz alta. Defendem um trabalho quando acreditam reconhecer um elemento valioso, mas também mudam de decisão a respeito das observações dos outros membros da mesa e fazem com que eles notem algum elemento que tenha passado desapercebido.

Ao final, aplicam seus próprios conselhos e emitem conceitos claros. Neste sentido, Carlos Ulanovsky deixa uma última reflexão: “Quando quiserem referir-se a um tema, falem dele. Não se desviem, não tomem atalhos inúteis porque isso, inevitavelmente, debilita o tema central e lhe tira força de identidade”. As coisas devem ser ditas da forma como elas são.

[1] GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel: “Do amor e outros demônios”. Editorial Diana. México, 1994.

Baixe o relátorio completo aqui.

 

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